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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O que tem aí dentro?

Uma atividade interessante, e que nesse ano foi sugerida para que os professores de física aplicassem logo na aula inicial, consiste na discussão dos "modelos explicativos" usados pela ciência em geral e, em particular, pela física.

O "fato pedagógico" a ser explorado, e que não é um fato nada óbvio para a maioria das pessoas, é que a ciência constrói modelos explicativos para a natureza e que a palavra "descoberta" tem, na verdade, muito pouca relação com o seu significado cotidiano. Ou seja, a ciência na verdade não descobre os segredos por trás dos fenômenos da natureza, mas ao invés disso ela simplesmente cria explicações e modelos para esses fenônemos naturais.

Quase tudo na ciência pode ser tomado como exemplo onde a "explicação", ou modelo explicativo, é uma construção mental que se encaixa muito bem nas nossas observações do fenômeno mas que, de fato, pode não ter nenhuma relação mais íntima com o fenômeno em si. Vamos tomar como exemplo um fenômeno bem conhecido por todos e cuja explicação científica é bela, simples e bem aceita por todos: a queda dos corpos.

Antes de Galileu, de Newton e seus contemporâneos, acreditava-se que as coisas tendiam a cair quando o seu "lugar natural" fosse a Terra e que quanto maior fosse essa tendência (que dependia do quanto o corpo fosse pesado), mais rapidamente o corpo tenderia a cair. Galileu mostrou que todos os corpos caíam da mesma forma, isto é, com a mesma aceleração, e que, portanto, não havia uma tendência a cair mais rápido quando o corpo era mais pesado. Logo depois, Newton propôs que as coisas não tinham nenhuma tendência especial para cair devido a busca do seu "lugar natural", mas sim que havia uma tendência natural entre as coisas feitas de matéria (que possuem massa) de se atraírem mutuamente. Newton chegou ao requinte de fornecer a relação matemática que descreve essa atração: sua famosa fórmula da força gravitacional.

Bom, depois de Newton outros também deram suas contribuições para a explicação da queda dos corpos e um desses, bastante conhecido por sinal, foi Einstein. O fato é que hoje temos uma "Lei da gravitação universal" proposta por Newton e aperfeiçoada por Einstein que funciona muito bem, mas continuamos não tendo a menor idéia do porquê isso funciona. Na verdade não sabemos porque a matéria atrai a própria matéria e nem podemos afirmar que isso sempre foi ou que sempre será assim. Muito menos ainda de que isso funcione sempre assim lá do outro lado do universo, ou dentro de um buraco negro ou, ainda, com outros tipos de "matéria" que ainda não conhecemos.

Antes que o leitor leigo em física começe a ficar desapontado é bom lebrá-lo de que praticamente tudo o que sabemos está sujeito a esse mesmo tipo de conhecimento: "modelos explicativos". E, por fim, relaxe, porque todo conhecimento é construído dessa forma, embora fora da ciência seja comum aceitar esses modelos explicativos como "verdades absolutas" ou "conhecimentos sagrados". Seja lá qual for o nome que você der a eles, serão sempre modelos explicativos, e nada mais que isso.

Voltando à atividade proposta, a sugestão é que se use uma espécie de "caixa preta" para que os alunos formulem hipóteses explicativas para descrever seu conteúdo ou seu funcionamento (dependendo do tipo de caixa preta usada). Espera-se que com isso os alunos percebam o caráter humano, hipotético e metodológico da ciência. Eu gosto muito dessa atividade e procuro usá-la em todas as séries, mas não exatamente como foi sugerido. Por isso mesmo vou deixar aqui outras sugestões alternativas onde essa discussão me parece partir de contextos mais realistas ou, pelo menos, não tão "abstratamente humanísticos".

Nas primeiras séries do Ensino Médio me parece pretencioso demais que os alunos recém saídos da progressão continuada consigam fazer abstrações e criar ou compreender modelos explicativos muito abstratos. Eu creio que eles gostariam muito de ficar duas aulas brincando com caixinhas, mas duvido muito que se poderia levá-los com isso a compreenderem a natureza hipotética e eminentemente humana do conhecimento científico. Nessa série eu prefiro lidar com esse tema ao abordar a idéia de método científico e geralmente proponho uma atividade prática que possa ser feita em casa (como o estudo da flutuabilidade de um copo com quantidades variáveis de água, o comportamento do período de um pêndulo simples em função de parâmetros como peso ou comprimento do fio de sustentação ou, ainda, o estudo do problema da queda dos corpos do ponto de vista conceitual). Essas questões "práticas" permitem também apontar o caráter hipotético do nosso conhecimento sem levar a divagações metafísicas do professor e bocejos compreensíveis dos alunos.

Na segunda série essa atividade me parece fundamental e fica bem contextualizada assim que nos deparamos com o problema do "modelo de gás perfeito" que, no fundo, remete aos modelos atômicos e moleculares. Aqui tanto faz se você usará uma caixinha cheia de bugigandas ou, com algum mecanismo secreto ou, ainda, se vai apenas propor uma experiência mental. O que importa é que o aluno tome conhecimento do modelo de matéria que servirá de base para o modelo de gás perfeito e que compreenda a "utilidade" do modelo. Alunos na segunda série já possuem uma chance menos remota de serem capazes de trabalhar com modelos abstratos e, dado que já tiveram alguns contatos anteriores com o tema, podem ter uma resposta mais positiva à atividade.

Por fim, na terceira série, prefiro tratar desse tema logo no início do curso de eletricidade, ao retomar os modelos de matéria (e o desenvolvimento histórico da teoria atômica) culminando com uma explicação detalhada do experimento de espalhamento de Rutherford e da proposição de seu modelo atômico-planetário. O experimento de Rutherford é um dos dez mais belos experimentos da física e, na minha opinião, é perfeito para se discutir a construção de modelos de conhecimento. Além disso, na terceira série do Ensino Médio meus alunos já começam a recuperar o cérebro que lhes foi abduzido pela progressão continuada e já quase são capazes de pensar de forma abstrata (alguns até conseguem!).

É claro que distribuir caixinhas com bugigangas ou mecanismos secretos durante essas aulas pode ajudar a tornar a aula mais divertida, mas a meu ver essas caixinhas, de forma descontextualizada (e principalmente, sem um encaminhamento didático compatível com a capacidade de abstração dos alunos), são apenas brinquedinhos pouco pedagógicos.


Para quem for usar "caixinhas com bugigandas", sugiro que utilize caixinhas de fósforos (fácil, barato e atende aos propósitos). Para quem for usar caixinhas com "mecanismos secretos" sugiro o modelo proposto no Caderno do Professor para as aulas de Física Moderna. Professores que não sabem do que eu estou falando, favor consultar o material disponível no site no Nupic. Para facilitar a vida, aqui vai o link direto para o texto que trata da construção de um dos modelos de caixa preta baseado em "mecanismos secretos".